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Capítulo 1 - Vá, Veja e Vença
— Menino, você ouviu
aquela barulheira ontem de noite? A mãe da Bianca me disse que parece que foi
briga, no meio da floresta. Mas briga feia mesmo, com Pokémon e tudo!
Hilbert bufou pelo
nariz, se virando na cama para encarar a parede com painel de madeira.
— Bom dia pra senhora
também.
— Não, mas é sério!
Acharam até umas árvores caídas perto do portão que dá pra Rota 17. Umas
cortadas na metade, outras queimadas… Muito estranho.
Puxando um pouco na
memória, o garoto se lembrou vagamente de ter ouvido alguns sons distantes
enquanto travava sua luta diária com a insônia, como alguém batendo em alguma
coisa de metal e um estrondo de trovão… Mas talvez ele tenha sonhado a última
parte. Não seria a primeira vez que ele teria sonhado com tempestades. Pelo menos
ele não tinha mais tanto medo delas, não como ele tinha quando era mais novo.
Mas com certeza era a
primeira vez que ele sonhava que tirava punhados de cabelo da boca. Não era nem
sequer cabelo dele mesmo, eram mechas longas e brancas… E um tanto quanto
duras. Mal parecia cabelo. Pesadelo estranho. E bem nojento.
— Mas enfim, levanta,
já passaram os dez minutinhos que você pediu.
— Por que eu tenho
que ir? Ela não consegue ir sozinha não?
— É o dia mais
importante da vida da sua irmã, não custa nada você estar lá pra apoiar ela.
Bora, levanta.
Tomando cuidado para
não bater a cabeça no beliche de cima, Hilbert se sentou em sua cama. Ou
melhor, o seu corpo havia se sentado,
pelo menos, pois o espírito ainda estava mergulhado no sono dos justos. Pegando
o seu Xtransceiver azul que estava do lado do seu travesseiro, ele conferiu a
hora. 08h10 da manhã. Ela tinha lhe dado exatamente dez minutinhos a
mais. Sua mãe era sempre precisa.
— Foi dormir com
roupa de sair de novo, mocinho?
— Esqueci… — Hilbert
bocejou, lutando contra o sono para prender o dispositivo de comunicação no seu
pulso. — Foi mal.
Apesar do tom de voz
recriminador, a mulher se aproximou para afetuosamente bagunçar ainda mais o
cabelo de seu filho. Bem, na verdade, ele era seu enteado, mas quem se importa? Nenhum dos dois nunca ligou para essa nomenclatura. Hilbert tem
sido filho de dona — que não a chamassem de “dona” na frente dela — Helga há
muitos anos, e era isso que importava. Até porque os dois eram parecidos o
suficiente para que nenhum estranho fizesse perguntas. Mesmo olhar severo,
mesmo semblante pálido… No caso de Helga era de nascença e no de Hilbert era
por falta de vitamina D. Muita falta de vitamina D. Ele bem que queria
ter os mesmos braços fortes dela... Mas não sentia vontade nenhuma de passar
anos num barco de pesca como ela passou. Ainda passa, na verdade, só que com menos frequência.
— Vai tomar café, ou
vai comer alguma coisa na rua?
— Na rua mesmo.
— Imaginei. — Helga
foi em direção às escadas que conduziam à sala de estar. — Se arruma e desce,
tá?
Os passos dela foram
se afastando, mas ainda era possível ouvir a sua voz gritando alguma coisa
sobre a bagunça que Hilda havia feito no quarto.
— Se arrumar… Tá. —
Hilbert deu uma risadinha sarcástica.
Em dez minutinhos,
ele calçou um par de tênis, vestiu um casaco azul por cima da camisa cinza — camisa
essa que estava limpa, ainda cheirando a desodorante, importante
ressaltar — e pendurou sua mochila vertical no ombro, que estava bem vazia, só
com alguns repelentes e uma máscara. O fato de ele ter dormido com a roupa — e
com seu colar da sorte em formato de folha que havia sido um presente da sua
avó — poupou muito tempo, estava tudo pronto. Ou quase.
— Ah é, falta o
cabelo…
Seus olhos
vasculharam o quarto. Não tinha uma escova em lugar algum. Sabe-se lá onde
Hilda havia guardado. Ao menos ela havia deixado um dos seus vários bonés em
cima da cômoda — preto, branco e vermelho. Parecia uma Poké Ball vista de cima.
Ele não fazia ideia sobre qual time era representado por aquele símbolo, nem de
qual esporte seria. Mas não importava, servia perfeitamente para esconder o
ninho de Patrat no topo da sua cabeça... E até que era bonitinho.
Hilbert Park foi até
o canto do quarto se olhar no espelho cheio de adesivos. Ele parecia o mesmo
moleque magricela de sempre, com a mesma expressão cansada e entediada de
sempre. Mas não era uma simples troca de roupas que resolveria aquilo, mas uma
coisa de cada vez. Aquelas roupas ainda cabiam nele e combinavam bem e isso já
era mais que o suficiente. Não era como se ele não fosse voltar para casa logo
de qualquer forma, então...
Mas, antes de sair,
ele conseguiu ouvir a voz do seu pai no seu ouvido, e ela dizia: “Coloque suas luvas antes de sair de casa,
aquecer as extremidades do corpo ajuda com o pulmão!” Isso sequer era
verdade? Principalmente quando as luvas em questão só iam até a metade dos
dedos? Hilbert não fazia ideia. Andrew Park pode ser um especialista em
Pokémon, mas com certeza não em pessoas. Mas quem seria ele para contrariar?
Tendo dito isso, ele decidiu pegar as luvas que seu próprio pai costurou para
ele.
Assim que Hilbert
botou o pé no primeiro degrau das escadas, sentiu seu Xtransceiver vibrar com
uma mensagem.
Logo em seguida, veio
a foto de um bolo de chocolate. Já haviam sido tiradas duas fatias dele.
Aparentemente ela
havia enviado a foto do bolo para Hilda também, pois assim foi a primeira coisa
que ele ouviu logo que pisou na cozinha:
— Pô, os bolo da Bibi
são mó bom… Cadê esse garo-Ah, 'tas aí!
Como Hilbert havia
imaginado, sua meia-irmã já estava prontíssima para sair, do bonézinho dos
Audinites — “melhor time de basquete de Unova!”, de acordo com ela,
ignorando totalmente o desempenho questionável deles nos últimos três anos —,
até a ponta das botas com salto plataforma — como se medir um metro e setenta e
sete já não fosse ser alta o bastante. Helga a olhava com um sorrisinho de
canto enquanto ela ajustava as luvas de motoqueiro nas mãos. Ela tinha uma
pulseira no braço esquerdo que havia ganhado da mãe como um presente de boa
sorte na noite passada. Contas laranja, vermelha e amarela: As cores do Pokémon
deus da vitória. Presente típico pra um jovem de Unova que estava prestes a
sair em jornada.
— Cê não tá com frio
não? Usando só um shortinho e esse coletinho?
Hilda olhou
rapidamente para as próprias pernas e braços.
— Não. Por quê? Tá
com frio?
— ...É primavera.
— Exato, ué. Tá
agradável!
— Só não vem pedir
meu casaco depois.
— Nem preciso,
otário, tô com o meu aqui! — Ela apontou para própria cintura.
A cozinha da casa
Park-Müller estava agitada como de costume, talvez pela última vez em algum
tempo. Os irmãos estavam discutindo e dona Helga lavava os pratos do café da
manhã — que Hilda fez questão de engolir o mais rápido possível —, e essa era
uma rotina que as paredes da residência já tinham visto centenas de vezes desde
que fora comprada pela família há alguns anos. Como todas as outras na cidade,
era uma clássica casa Unovense com um quê
de estilo náutico, capaz de resistir qualquer onda... Mesmo que o mar estivesse
há cerca de dez minutos a pé. Por dentro, era bem parecida com quase qualquer
outra casa de Nuvema, com móveis e painéis de parede com a mesma madeira
marrom-acizentada, com as mesmas portas e escadas que rangem. O que a
transformava em um lar era a quantidade de plantas que Andrew havia colocado
pelos cômodos. Como elas sobreviviam a cúpula de maresia que parecia dominar a
cidade, era um mistério. Não era a casa mais chique de Nuvema — esse cargo
pertencia à família Petrich —, mas era mais do que suficiente para os quatro e
os poucos Pokémon que tinham em sua posse. Talvez algum dia eles se mudassem
para outra cidade, se melhorassem um pouco de vida, o suficiente para se mudar
para Accumula ou Striaton. Mas este dia ainda estava distante.
Hilbert parou de
provocar sua irmã mais velha e parou pra ouvir o som da TV que estava ligada na
sala. Estava passando um dos primeiros programas do dia da Rede Wawalk. A pauta
do momento era sobre Porygon e sua linha evolutiva, e se mais Pokémon
cibernéticos poderiam existir no futuro. O garoto se levantou da mesa de jantar
e foi até a sala pra assistir.
— Um Pokémon com a
habilidade de fazer downloads utilizando acesso à internet, assim como o
Porygon, poderia tirar vantagem das fraquezas do seu oponente...
— Vamo embora logo! —
Hilda trouxe a atenção dele de volta com um berro, correndo até a sala e
puxando seu braço. — O bolo que a Bibi fez pra gente vai esfriar!
— Shhhh, tô ouvindo.
O papai tava me contando sobre esses bichos um dia des-
— Hilbert, vai logo.
— A mãe dos meninos falou em voz alta da cozinha. — Depois você assiste isso na
internet. A professora tá esperando vocês.
Bufando e revirando
os olhos, Hilbert se dirigiu até a porta, colocando a sua cópia da chave — com
um chaveiro de Solosis — no bolso depois de abri-la. Apesar do desejo de ainda
estar no seu décimo terceiro sono estar evidente em sua expressão facial, ele ainda
teve o cavalheirismo de mantê-la aberta para Hilda, que saiu correndo sem nem
olhar para trás.
— Dá tchau pra mamãe,
imbecil!
— Ah, foi mal! — A
garota enfiou a cabeça para dentro de casa por um instante, e gritou alto o
suficiente para espantar uma revoada de Pidove que estavam na frente da casa: —
TCHAU, MÃE!
— Tchau, crianças! E
não chama sua irmã de imbecil!
Pela primeira vez no
dia, Hilbert abriu um sorriso.
— Tchau, mãe.
Por sorte, não havia
muita luz lá fora para cegar os olhos dos pobres condenados que haviam acabado
de acordar. Mas com certeza havia uma brisa fria para despertá-los, que é a
marca registrada de Nuvema junto ao seu “charme sudestino”. Toda a pouca neve
que havia caído na cidade no inverno já tinha derretido, mas as manhãs ainda
passavam aquela energia preguiçosa de começo de primavera. Só havia algumas
senhoras varrendo a areia de suas calçadas e trabalhadores — boa parte deles pescadores
— saindo de casa.
Há um ditado que diz que você não
mora em Nuvema, você se esconde em Nuvema. É uma comunidade isolada
em todos os sentidos da palavra, sendo um condomínio fechado. Os habitantes — boa parte composta por famílias — valorizavam sua
privacidade ao extremo, ao ponto de que nem era possível ao menos encontrar um
mapa dela na internet. As praias são cinzentas e perigosas demais para se
nadar, só servem para os pescadores locais, então não havia um pingo de
interesse por parte dos turistas. A cidade é considerada literalmente um
buraco, já que está cercada ou por morros e ladeiras, ou pelo mar.
Hilda, no entanto,
estava imune à energia preguiçosa de Nuvema, pois ela já estava vários passos à
frente. E aparentemente estava imune à brisa fria também, visto que mantinha um
sorriso tangente no rosto apesar do rabo de cavalo não se manter parado um só
instante pelo vento que soprava. Mas quem poderia culpá-la? Este seria o dia
mais importante da sua vida… Até agora! Mais do que insígnias, mais do que alcançar
a Liga — por mais que tudo isso seja bem atraente —, uma jornada é um rito de
passagem para a vida adulta. E, bom, batalhar é a única coisa que ela sabe fazer bem de qualquer forma...
…E também é um rolê
bem divertido, que é o principal! Mas primeiro, ela precisava de um parceiro. E
Hilda sabia exatamente qual iria escolher — Se Cheren ou Bianca não pegassem
ele primeiro, claro!
Bianca. O sorriso no
rosto de Hilda sumiu. Ela parou de caminhar na hora, quase fazendo com que seu
irmão se chocasse contra suas costas.
— Ô!
— Será que a Bibi vai
ficar bem?
— Hã? — Ele franziu a
testa.
— Com o pai dela.
— Ah...
O ar da manhã pareceu
esfriar ainda mais de repente. Ou talvez fosse o peso do silêncio que pairava
por ele. Não importa quantas vezes o pai da Bianca fosse mencionado, nunca
ficava mais fácil falar sobre ele. Ou lidar com ele. Ou conviver com ele na
mesma cidadezinha minúscula, onde rumores se espalham como fogo.
— Ela me disse que… —
Hilbert pigarreou, o som ecoando pela rua semi-deserta. — Ela disse que ele não
vai estar em casa essa semana por causa de alguma viagem de negócios. Então
essa vai ser a chance dela dar o fora.
— Mas a mãe dela vai
ficar bem? Com ela só saindo assim sem falar nada pra ele?
Ele hesitou pelo que
parecia uma eternidade antes de responder.
— Eu não sei. Mas… Se
ela tá saindo, eu assumo que esteja tudo bem… Dentro do possível, pelo menos.
— É, acho que sim… O
Cheren tá sabendo disso tudo?
— Até agora, não.
Acho que ela não quer que ele se envolva. Você sabe como ele é.
— Faz sentido…
Restavam alguns
minutos de caminhada até a casa da família Petrich. Os irmãos voltaram a andar
em silêncio, mas dessa vez Hilda desacelerou o passo para ficar ao lado de seu
irmão, só parando para pular em algum banco público ou girar teatricamente em
um poste como se estivesse dançando na chuva — e como se ela tivesse oito anos,
não dezoito —. Mas apesar de suas ações parecerem empolgadas, a expressão no
rosto da garota não condizia com elas. Hilda parou de novo após virar uma
esquina.
— É por isso que ‘cê
não vai pegar um Pokémon?
Hilbert suspirou pelo
nariz. Aquele assunto de novo…
— Por isso o quê?
— Pela Bibi. Porque
talvez essa seja a única oportunidade que ela tem de fugir de casa? E ‘cê não
quer tirar isso dela?
Mais uma suspirada.
Hilda podia ser impulsiva e desatenta para umas coisas, mas era observadora
demais para outras.
— Minha vida seria
muito mais fácil se você fosse burra, sabia?
— Ué, não é minha
culpa se você é um livro abertaço. Nem precisa ser um gênio pra chegar
nessa conclusão.
— Quê? Eu não sou
aberta-
— É sim. Responde a
pergunta.
— Sim, também é por
isso. Seria um egoísmo do cacete roubar a fuga dela do buraco do inferno que é
aquela família dela por algo que eu nem tenho tanto interesse.
— Também? Tem algum outro
motivo?
— O outro motivo é
que eu não quero um Pokémon. — Hilbert voltou a caminhar, dessa vez mais
rápido. A última coisa que ele precisava é que algum velho fofoqueiro visse
essa discussão e saísse contando tudo pros seus pais.
— Não quer mesmo?
— Não.
— Serinho mesmo?
— Sério, Hilda
Müller. E essa é a última vez que a gente tá tendo essa conversa.
— E tu é meu pai
agora?
— E eu tenho cara de homem
invisível pra ser seu pai?
Hilda tentou abafar
uma risada, falhando miseravelmente.
— Deixa a mamãe
escutar você fazendo piada com is-
Ela foi interrompida pelo som de notificação do seu Xtransceiver rosa. Cheren mandou uma mensagem no grupo — carinhosamente chamado de HBCH — dos quatro amigos:
— Mas ele mora
pertinho de lá, pô. Vamo, falta pouco!
[...]
— Por que tem um
carro da polícia na frente do laboratório?
Além do veículo
parado na porta, havia dois policiais e pelo menos metade da equipe do
laboratório estava do lado de fora. Alguns falando no celular, outros
conversando entre si ou com os policiais. A maioria parecia confusa, mas os
assistentes mais jovens pareciam estar de saco cheio.
— Ah, mamãe tava me
contando de uma briga que rolou na floresta, lá pela Rota 17. Será que é por
isso?
— E o que o
laboratório tem a ver com is-Eita!
O olhar de Hilda se
dirigiu até as árvores do lado esquerdo do prédio. Assim como dona Helga havia
dito mais cedo, haviam árvores caídas — uma delas quase caiu em cima do
moinho de vento Johtoniano da professora —, abrindo um caminho até a Rota
17.
— Gente, o que rolou
aqui? — Hilda colocou uma mão na cintura.
— A mãe de alguém
tava contando pra ela dessa batalha. Eu acho. Tava meio acordado, meio dormindo
na hora que ela tava falando... Mas tinha árvore queimada, fatiada e os cacete.
Não tinha como saber
sobre as árvores mais ao fundo da rota, mas as que estavam diante deles
pareciam estar mais jogadas de lado do que cortadas de fato. Algumas ainda
estavam parcialmente presas pelas raízes.
— Aquilo ali é sang-?
— Hibi! Hil!
Os irmãos se viraram
na direção da voz feminina que os chamava. Seus dois amigos de infância
caminhavam rápido até eles. Bianca carregando um tupperware num braço e acenando alegremente com a mão livre, e
Cheren carregando uma caixa de presente azul.
Cheren escolheu suas
roupas favoritas para este dia tão importante, com sua camisa que simulava
vagamente o uniforme de uma das escolas que ele aspirava ser aceito, a renomada
Blueberry Academy — Bianca havia contado pra ele sobre “o poder da atração”, e
ele vinha usado essa camisa sem parar desde então, mesmo insistindo que não
acreditava nesse tipo de coisa —, um casaco que era merch oficial de uma de suas bandas favoritas — Rival Destinies — e seus
óculos favoritos. Ter várias armações era um dos poucos luxos que lhe sobraram,
e ele iria seguir desfrutando disso enquanto pudesse.
Bianca sempre diz que
gosta de vestir as roupas que sua mãe escolhe para ela. O quão verídica era essa
afirmação, ninguém sabia ao certo. Poucas jovens iriam escolher uma saia até
abaixo do joelho e sapatilhas para partir numa jornada. Mas era fato que, por
algum motivo, ela gostava das suas meias cano-alto laranjas e de sua boa e
velha boina verde, mesmo sem a influência da sra. Rossi. Sem falar no colete
feito de crochê da mesma cor das meias com babados na cintura. Bom, há gosto
pra tudo, certo?
— Opa, é essa caixa
aí? — Hilda apontou com a cabeça para o que Cheren carregava.
— Sim. Uma assistente
bem rude me entregou e disse para abrirmos em outro lugar, pois estão todos
ocupados demais para “ficar fazendo festa” pra gente… Palavras dela, não
minhas.
— Foi bem
anticlimático. — Bianca franziu o rosto em solidariedade. — Ela foi mal educada
demais!
— Ah, deve ter sido a
Patrícia. — Hilbert revirou os olhos. — Ela odeia crianças. Me olha feio toda
vez que vou buscar algo no laboratório pro meu pai.
— E isso aí é o bolo,
Bibi?
— Prioridades, hein,
Hilda… — O rapaz de óculos zombou.
— Claro! A gente deixou
um pouquinho pra vocês!
— Só um pouquinho? —
Hilbert deu um cutucão brincalhão na amiga. — Tô com fome, não tomei café da
manhã ainda.
Os quatro começaram a
fazer o caminho de volta para casa dos Müller-Park, na formação de caminhada
que faziam desde o ensino fundamental: Hilda e Cheren atrás, Bianca e Hilbert
na frente. O céu estava mais claro, o tempo menos frio e as ruas menos desertas
do que quando os irmãos se dirigiram até o laboratório. Alguns rostos
familiares da vizinhança cumprimentaram o quarteto, afinal, todas as famílias em Nuvema se conheciam. Todos conhecem os filhos da dona Helga, o filho da sra. Dragomira e a filha do dr. Rossi. As meninas desejavam bom
dia de volta alegremente, já os meninos só sorriam de forma tímida e acenavam
com a cabeça.
— Aliás, o que era
que a professora queria me falar? — Hilbert virou o pescoço para encarar o
amigo que andava atrás dele.
— Ela tem um trabalho
pra você.
— ...E? Do que se
trata?
— Ela não me disse.
Acho que você vai ter que encontrar com ela pessoalmente em Accumula pra
descobrir.
— Ah, é sério?! Agora
eu vou ter que ir lá?! — O garoto cruzou os braços. — E se você só sabia disso, fez suspense
pra quê?!
— Porque sim. —
Cheren sorriu maldosamente.
Enquanto isso, Bianca
também se virou, sussurrando pra Hilda o mais baixo que ela conseguia:
— Ei, o Hibi não vai
mesmo pegar um Pokémon?
— Nope.
— Ah… — Ela olhou
para o chão, brilho sumindo do rosto. — É por minha causa?
— Claro que não, pô.
Ele é que tá se fazendo de difícil mesmo. Mas não se preocupa, logo, logo a
gente convence ele.
Hilda levou uma
cotovelada nas costelas vinda da direita que a teria empurrado para o lado se
ela não fosse tão mais forte que o irmão, que em troca levou um empurrão que
quase o fez dar de cabeça num poste se não fosse Cheren puxando-o pela gola da
camisa.
— Eu tô ouvindo, viu,
palhaça?
— E quem disse que eu
tô falando contigo, garoto? Para de ouvir a conversa dos outros!
Bianca não pode
deixar de gargalhar da situação… Até que foi a vez dela de quase se chocar com
tudo num outro poste por estar andando de lado, e também foi salva por Cheren
ao ser puxada pela mão. Algumas pessoas na rua viraram para olhar quando ela
deu um gritinho de susto, mas voltaram aos seus afazeres quando perceberam que
era só a Bianca quase se acidentando… De novo.
— Bianca, por favor,
olha pra frente. E eu já falei pra vocês dois não brigarem enquanto
estamos andando! — Cheren bufou em protesto. — Qualquer dia desses alguém vai
acabar se machucando, e esse vai ser o último dia que eu vou andar com
vocês!
— Tá bom, mãe, já entendi, qualquer dia desses ‘cê
vai sumir. — Hilda revirou os olhos.
Depois de uma
caminhada cheia de briguinhas infantis e risadas, o quarteto chegou na casa dos
irmãos, onde dona Helga estava ao telefone, sentada no sofá.
— Voltamo-
— Shhh! — Hilbert
silenciou a irmã.
— Tá combinado então,
espero que dê certo… Ah, eles chegaram. Depois a gente se fala, Andy. Te amo. Tchau.
A mãe dos meninos
desligou o Xtransceiver, se levantou e sorriu ao olhar para o quarteto.
— Bom dia, sra. Park.
— Oi, oi, tia!
— Como vão, crianças?
— Era o papai? No
telefone? — Hilbert perguntou. — Ele conseguiu aquelas férias?
— Tá tentando. Até
agora, só o próximo fim de semana mesmo. — Helga suspirou. — Ele queria que
vocês fossem visitar ele, na verdade, já que uma hora vocês vão passar em
Nimbasa de qualquer jeito.
— Vocês? No plural?
— Cherinho, Bibi,
querem um cafézinho? — Ela perguntou, ignorando a pergunta do filho.
Hilda tomou a caixa
das mãos de Cheren — que estava com as orelhas vermelhas, como sempre ficava
quando a sra. Park o chamava de Cherinho —, erguendo-a no ar como se fosse um
troféu.
— Não, a gente vai
abrir o presente!
— Ah, sim. Abram lá
em cima no quarto de vocês, não quero bagunça na sala.
Helga mal tinha
acabado a frase, e Hilda e Cheren já estavam subindo as escadas correndo.
— Ei, Bianca, deixa o
bolo aqui na cozinha pra eu comer, por favor… Tô com fome… — Hilbert
choramingou.
— Ué, você não vai
subir com a gente? — A loira perguntou, inclinando levemente a cabeça pro lado
como se fosse um Lillipup. —
— Pra quê? Eu não vou
pegar um inicial…
— Vai só pra olhar,
filho…
— Aaaargh, táááá…
E a passos pesados,
Hilbert subiu as escadas. Bianca deu um joinha rápido para dona Helga, e correu
logo atrás dele. No quarto, Hilda já havia jogado tudo que estava em cima da
cômoda na cama do irmão para abrir espaço para a caixa dada pela professora
Juniper.
— Então… — Ela abriu
um sorriso que mal cabia no rosto. — Todos prontos?
Prólogo - Pesada É A Cabeça
Hilbert encarava com tristeza o quanto Hilda tentava conter todo e qualquer traço de otimismo em relação a sua nota.
Por isso estavam só eles dois em
Striaton. Ela enfatizou que não queria nem a mãe nem o padrasto ali naquele
momento, pedindo para que eles parassem o carro no fim da Rota 2 e os deixassem
ir caminhando, não querendo que eles criassem expectativa a troco de nada caso
ela não conseguisse passar... De novo. Mas ela também não tinha mais forças
para fazer aquilo sozinha. E por isso Hilbert estava ali. Normalmente, ele
abominava acordar cedo e abominava ter que ir para Striaton, que ficava a eras
de casa, mas não achava justo reclamar quando ela estava tão fora de si.
Faz três anos que Hilda tenta passar
na prova para ganhar sua Licença de Treinadora que acontecia duas vezes por
ano. Em todas as vezes, ela chegava perto, mas não conseguia alcançar os sete
pontos necessários. Sempre faltava alguma coisa, e a tentativa mais recente
tinha sido também a mais humilhante: Seis e meio. “Quem sabe ano que vem,
hein?”, zombara a recepcionista. Foi um dia pesado tanto para Hilda quanto para
o resto da família, que viu a garota se sentando no chão da cozinha e chorando
assim que botou os pés para dentro de casa. Tão perto, mas tão longe. Ela tinha
dezoito anos. Dezoito. Jovens da idade dela já estavam encerrando suas jornadas
e seguindo um rumo na vida, e ali estava ela, ainda sofrendo para sequer
começar...
Pelo menos alguém estava de bom
humor enquanto os irmãos caminhavam por Striaton, e este era o Swoobat da
família — que foi capturado por eles dez anos atrás, longa história —. O
Pokémon morcego estava feliz por esticar as asas enquanto escoltava os garotos
voando acima de suas cabeças. Ele se aproximou brevemente de Hilda para tentar
animá-la, esfregando o nariz em formato de coração em sua bochecha. Ela sorriu
de leve para o amigo e fez carinho no pelo azul claro desgrenhado em seu
pescoço. Swoobat pareceu satisfeito, e voltou a voar perto dos telhados das
casas.
O clima estava ruim, tanto no
sentido figurado como no literal. As nuvens escuras no céu e os restos da neve
derretida — que não era muita, se tratando do sudeste de Unova — no chão
pareciam fechá-los numa redoma fria. As luzes dos postes estavam até acesas,
mesmo sendo de manhã.
— Ei, hã... — Hilbert chamou,
incerto sobre como fazer a meia-irmã se sentir melhor. — Quer dar uma passada
no Pokémon Café? Depois que a gente pegar o resultado.
— Só se ‘cê pagar um sorvete pra
mim!
— Tá, tá, só dessa vez — ele revirou
os olhos de brincadeira. — Metadinha como sempre?
— É claro!
Por um momento, ela sentiu um pouco
da empolgação voltando... Apenas para tudo cair por terra quando a escola de
Striaton entrou no seu campo de visão e o medo tomou conta de cada centímetro
do seu corpo. Droga. Ela não devia ser assim. Devia encarar e aceitar o
resultado que fosse, pois seria o que ela merecia. Mas ela não aguentava mais
falhar. Essas provas eram caras, independente da condição financeira do seu
padrasto, era dinheiro investido. E tempo, muito tempo gasto. Só podia refazer
a prova de seis em seis meses. Sem contar que se ela não conseguisse de novo,
ela não ia conseguir sair em viagem junto com Cheren e Bianca... Eles ainda
foram gentis de esperar meio ano por ela depois do fiasco daquele resultado seis
e meio. Ela não podia ficar para trás. De novo não. Por favor-
— Ei. — Hilbert chamou de novo.
Quando Hilda se virou, observou que
o seu irmão estava oferecendo os dedos para ela segurar. Não a mão inteira: Apenas
os dedos. Quatro, exceto o dedão. Desde que eles foram confundidos com
namorados há alguns anos, eles não conseguiam mais andar de mãos dadas
normalmente sem sentir nojo. Apesar disso, era raro eles andarem
dessa forma. Afinal, já não tinham mais idade para isso.
Ela agarrou os dedos dele com
firmeza, respirando fundo e esfregando os olhos para afastar as lágrimas, lutando para andar reto.
Hilbert não estranhou a força que a
irmã estava usando, havia muita coisa em jogo hoje. Se ela tirasse seis e meio de
novo... Ele ia engolir todo o medo de conflito que sentia e iria atrás daquele
professor para fazer um barraco. Não ia deixar ela passar por isso mais uma
vez, não quando ela teve a coragem de continuar insistindo nessa prova idiota!
Ele já teria desistido na segunda tentativa.
— Se esses imbecis não deixarem você
passar, só falsifica essa licença e pronto.
— Hilbert! — Ela lhe deu um tapa no
braço com a mão livre, tentando segurar o riso.
— Tá, tô zoando. Mas pelo menos
aceita a carta de recomendação do meu pai pra acabar com isso logo.
— É nepotismo, pô, ele é meu padrasto!
— Não é nepotismo se você é boa!
Galar usa esse sistema por um motivo, afinal. — Ele debochou da região longínqua.
— E bem que a Liga precisa de gente competente... Unova tá uma decadência.
— Tá ruim assim, é?
— “Unova se acha o centro do mundo,
mas ela não passa de uma grande piada”. É isso que todo mundo diz internet à
fora.
Por trás de mares de dinheiro, se
esconde uma terra sem cultura própria, um povo arrogante e, acima de tudo, um
cenário de batalha completamente caótico. Uma Liga Pokémon tão desestruturada
que diziam estar amaldiçoada. De uns tempos para cá, ninguém que se afiliava a
ela durava mais de dois anos no cargo. Até entre os funcionários em cargos mais
baixos, ser transferido de outra região para Unova era considerado um castigo,
um fim de carreira, um motivo de deboche.
Líderes de Ginásio? Houve três
mudanças no ano passado, e só uma delas mostrava resultados acima da média —
sem contar que dois dos líderes mais conhecidos planejavam se aposentar em breve.
Elite dos 4? Teve de ser reconstruída do absoluto zero após o desaparecimento
súbito do antigo campeão. E os novos membros são, com exceção de um,
questionáveis, para se dizer o mínimo. Sem falar no atual campeão, alguém que
claramente não queria estar ali e estava desesperado para achar alguém que
tomasse seu lugar o mais rápido possível.
— ‘Cê acha que é por isso que eles
aumentaram o número máximo de desafiantes esse ano?
— Ah, com certeza. Eles tão
desesperados por uma novidade. Provavelmente querem achar um novo Red... —
Hilbert deu uma risadinha seca. — Todo mundo quer um Red, mas ninguém quer uma
nova Equipe Rocket...
— Nem fala uma coisa dessas...
O colégio de Striaton era bem maior
do que qualquer um dos dois estava acostumado, já que ambos estudaram numa
escolinha em Accumula a vida inteira. Era ali que seria publicado e exibido o
resultado das provas para os treinadores da região sudeste de Unova. Hilda
apertou os dedos do irmão — que tentou não fazer uma careta de dor — com ainda
mais força, com o coração na boca. A maioria dos adolescentes que entravam
pareciam empolgados. Hilda, por sua vez, parecia que estava caminhando para uma
sentença de morte. Ela olhou de forma ansiosa pra Swoobat, que se empoleirou
num poste na frente da escola, esperando por eles. Ele acenou com a asa, desejando boa sorte.
Como era de costume, os resultados
estavam num papel colado na parede do pátio da escola, perto da cantina azul e
vermelha. Se ela havia passado, seu nome estaria ali. Caso não... Seria um
longo caminho de volta pra casa. “APROVADOS DA TEMPORADA DE PRIMAVERA”, era o
que estava digitado no topo da página em letras grandes; os nomes em ordem
alfabética. Os irmãos ficaram parados na frente do papel por alguns instantes,
sem ter coragem de olhar.
— Acaba logo com isso. — O garoto
murmurou, seu tom gentil apesar da dureza das palavras.
Hilda respirou de forma trêmula,
fechando seus olhos e silenciosamente implorando a qualquer entidade que estivesse ouvindo por um segundo antes de aproximar o rosto dos resultados,
pulando de uma letra pra outra. A, D, E, G... H...
— HILDA LOTTA MÜLLER! — Ela gritou o
próprio nome completo, se virando pro irmão com olhos arregalados.
Ele também abriu a boca em surpresa,
mas rapidamente abriu um sorriso aliviado.
— Parabéns!
— EU PASSEI! — Ela agarrou Hilbert
pelos ombros e o sacudiu, dando pulinhos no mesmo lugar.
— Passou mesmo!
— S-será que... Será que foi uma
nota alta? Eles não falam, né?
— Quem liga?! O que interessa é que
passou!
— É, tem razão...
O entusiasmo dela sumiu um pouco
quando seus olhos se encheram de lágrimas, mas seu irmão não a deixou hesitar
por muito tempo:
— Bora voltar pro carro pra gente
pegar aquele sorvete com o papai e a mamãe.
Ela fungou, limpando o rosto com as costas da mão, e fez que sim com a cabeça, o sorriso voltando. Depois de
olhar mais uma vez para o próprio nome na lista, Hilda segurou a mão de Hilbert
de novo, mas dessa vez foi pra puxá-lo quando ela começou a correr em direção à
entrada da Rota 2.
— PARA DE ME ARRASTAR CONTIGO-
[...]
O momento
mais importante da história da Team Plasma havia
acabado de acontecer a apenas alguns minutos. Todos os esforços de cada
integrante da organização foram para este dia: A coroação do rei. Este seria o
alvorecer de uma nova era. Para os Plasmas, para Unova, para o mundo, para os
Pokémon…
E N estava sentado em
sua escrivaninha tomando chá e lendo um livro de mitologias como fazia — quase
— todas as noites desde que aprendera a ler, tendo se desvencilhado da sua capa e coroa assim que pôde. Certas coisas nunca mudavam…
Exceto a leitura! Ao invés das costumeiras lendas antigas de Unova, o monarca
recém-coroado finalmente decidiu começar a ler um livro que um dos Sete Sábios
havia lhe dado de presente de aniversário: “A
Distorção e o Espaço-Tempo”, uma coleção de lendas e relatos sobre os
Pokémon lendários da região de Sinnoh. Ghetsis provavelmente não aprovaria a
leitura de algo que não agregaria nada aos planos da Team Plasma, mas, bem,
ele deveria estar ocupado demais para vir lhe dar um sermão agora.
A parte mais impressionante do livro não eram as viagens no
tempo ou os contos bizarros sobre o Distortion
World, mas o fato que as pessoas de antigamente temiam os Pokémon, ao ponto de alguns os verem como “bestas
terríveis”. Bestas terríveis! Que
absurdo! N não conseguia imaginar viver num tempo onde os Pokémon não fossem
vistos como amigos. Mas por outro lado, se ainda fosse assim nos dias de hoje,
talvez os Plasmas não precisassem existir. Os Pokémon viveriam livres na
natureza, sem Pokébolas, sem Pokédexes… Apesar de que, infelizmente, esses
conceitos já existem há muito, muito tempo, desde aquela época. Por isso era
uma tarefa tão difícil fazer as pessoas abandonarem esses ideais. Ah, se ele
pudesse voltar no tempo… Seria o herói da verdade e destruiria todas essas-
— Te achei.
Talvez ele não fosse, de fato, digno de ser herói, pois o
pulinho de susto que havia dado em sua cadeira não foi nem um pouco heróico.
Mas ser sorrateiro era o trabalho da Tríade das Sombras — mesmo que não
houvesse razão para se espreitar desse jeito dentro dos muros do castelo.
— Nossa, você me deu um susto… — N cerrou os olhos, tentando
identificar o rosto por baixo da máscara. — ...Quark? Que roupa é essa? Quase
não te reconheci.
— Protótipo do novo traje. Ghetsis me pediu pra testá-lo.
— Aaah, sim… Você gostou? — N tomou um gole do seu chá de
erva-doce.
— Não. Não sou fã dessa ideia de uniformizar a Tríade. Sem
contar que me sinto um pouco… — Quark olhou com desdém para o próprio estômago,
que estava sendo coberto por um material fino. — Exposto. Não sei o que a
Anthea tem na cabeça. Às vezes eu acho que a ausência da Concordia tá mexendo
com o juízo dela...
De fato, o protótipo
tinha um design… exótico, para dizer
o mínimo. Luvas transparentes nos dedos, botas pesadas demais para um ninja,
sem falar, qualquer que fosse o significado, daquele cinto cafona em formato de
“x” em sua cintura.
— Bom, pelo menos a peruca é bem mais bonita. Parece cabelo
de verdade.
— Ah, isso sim. Não que seja difícil, as nossas são um horror. Tanta grana e só agora vieram investir em uma decente pra gente...
Mesmo sabendo que era errado, o garoto de cabelo verde não pôde
conter um sorriso ao ouvir esse comentário.
— Você é o único que tem coragem de criticar Ghetsis dessa
forma.
— É isso que a intimidade faz com as pessoas... — ele suspirou,
se aproximando da escrivaninha de N a passos arrastados. — Mas chega de falar de
mim. Vamos falar de você. Como se sente?
— Estou dando uma olhada no livro que Rood me deu! — O garoto
mostrou a capa do exemplar para o ninja, usando seu dedo para marcar a página
que estava lendo. — É fascinante! Por mais que seja um pouco frustrante ver que
o aprisionamento de Pokémon é tão antigo, creio que é importante descobrir onde
tudo come-
— Eu me referia à coroação.
O sorriso no rosto de N diminuiu consideravelmente.
— Ah. Sim. Foi… Um momento importante.
— Se sente diferente agora que é oficialmente o rei da Team Plasma?
N pôs o pesado livro de volta na mesa, colocando um marca
página no formato das asas de um Sigilyph no lugar do seu dedo indicador. Ele
girou na cadeira de rodinhas para encarar Quark. Como sempre, era difícil ler
sua expressão com metade do seu rosto estando coberto, mesmo com seus olhos
estando à mostra. E N nunca gostou da ideia de encarar alguém por longos
períodos de tempo de qualquer forma.
— Não muito. Me sinto o mesmo de sempre. A única diferença é
que agora tenho uma coroa.
— Entendo… Não se sente mais heróico, nem nada assim?
O rapaz fez que não com a cabeça.
— Imaginei que esse fosse o caso.
— Por que perguntou, então?
Quark deu uma risada que a máscara não conseguiu abafar
totalmente. Como sempre, ele não havia se ofendido com a sinceridade do seu
lorde.
— Só por curiosidade.
— Entendo. Enfim, eu me sinto normal, se é isso que você
queria saber.
— Muito bem. Mas não vim aqui apenas pra isso. Lhe trago a
sua primeira missão como monarca da Team Plasma.
O rei dos Plasmas arqueou as sobrancelhas. Uma tarefa tão
tarde da noite? Um tanto quanto incomum. Isso geralmente não era um bom sinal…
— É urgente?
— Sim.
— Do que se trata?
— Você não vai gostar.
— É sobre os nossos novos aliados? Arlo acabou de chegar, e
ele já está causando proble-
— Não. — Quark o interrompeu. — Dessa vez, não.
— ...Por favor, me diga que não é sobre o Dudley.
— Acertou.
N bufou e revirou os olhos, se inclinando bruscamente na sua
cadeira, que rangeu em protesto e andou alguns centímetros pro lado.
— Já lhe foi passada a ordem de encerrar esse projeto! O que
mais eu preciso fazer para que ele desista?!
— Prefere que eu peça pro Rydberg lidar com isso?
— De jeito algum. A última coisa que precisamos é da Polícia
Internacional nos seguindo novamente por causa das atitudes inconsequentes
dele.
N bebeu o resto do seu chá de erva-doce em um rápido gole,
colocou o seu bom e velho boné preto e branco que jazia em cima da escrivaninha e se dirigiu
rapidamente a porta do escritório. Quark o seguiu, seus passos sendo muito mais
leves do que os do seu lorde.
— Vai pedir reforços? — questionou o ninja.
— Acho que será necessário, infelizmente. Não sei dizer se
Dudley ficará agressivo ao ser rejeitado… — N suspirou antes de continuar. — De
novo.
— Que tal o Scarlet?
— Era justamente nele que eu estava pensando.
Após uma caminhada considerável — e um pouco assustadora,
por quase todas as luzes estarem apagadas — pelo longo corredor do castelo e
após um lance de escadas, a dupla chegou ao jardim… Ou talvez bosque fosse o termo mais correto.
Anthea e Concordia plantaram algumas flores em algum momento passado, mas fora
isso, era um arvoredo quase que intocado. Havia um desfiladeiro além da mata,
mas N nunca esteve lá. “O risco de deslizamento é muito alto”, disse Ghetsis
certa vez, então a entrada era expressamente proibida… Menos para os Pokémon
sob proteção da Team Plasma.
Tirando alguns
pequenos postes que ficavam acesos à noite, o jardim estava mergulhado em
relativa escuridão… Bem do jeito que Scarlet gostava. N deu alguns passos à
frente, enquanto Quark lhe aguardava na porta, encostado na moldura.
— Scarlet? Você está ocupado? Gostaria da sua ajuda.
Um vento soprou pelas folhas de uma árvore mais distante,
mas não parecia uma brisa natural. Era como se alguém tivesse acabado de passar
correndo por ali… Mas o único ser que se manifestou e apareceu diante de N foi
um pequeno Venipede. Piscando e caminhando lentamente com suas várias
perninhas, ele se dirigiu ao garoto.
— Ah, aí está você. Espero não ter te acordado.
— Acordou. Mas que
ajuda? — A voz do Pokémon veio até ele,
profunda e arrastada.
— Lembra que eu contei sobre uma ilha que eu visitei há
alguns meses?
— Não.
— Aquele dia que você disse que eu cheguei aqui cheirando a
plástico e maresia.
O Venipede inclinou a cabeça para o lado.
— É onde
aquele cara bizarro mora?
— Exatamente! — N fez que sim com a cabeça. — Então… Creio
que nós precisamos visitá-lo de novo. E desta vez, gostaria de ter sua ajuda.
Talvez eu precise de proteção.
— Aquele
maluco não vai com a gente não, né? — Pareceu mais uma afirmação do que uma pergunta.
— Ainda
bem. Quark é bem mais sensato que aquele palhaço.
— Posso contar com você, então? — N estendeu sua mão com a
palma virada em direção ao rosto do Pokémon.
O Venipede se encolheu e, por um instante, sua forma pareceu
tremer, primeiro devagar, depois mais violentamente, até chegar num ponto que
não parecia natural.
Por um instante, ele desapareceu… E uma figura muito mais
alta tomou o seu lugar. Um Pokémon negro, com pelo vermelho, olhos
assustadoramente azuis e garras afiadas. O Zoroark estava em sua verdadeira
forma, honra que ele concedia apenas a aqueles em quem confiava.
Ele pressionou o seu focinho contra a mão do seu “mestre” de
forma carinhosa, recebendo um afago em troca.
— Com
certeza.
— Obrigado, muito obrigado. Ah, talvez precisemos ficar em
um hotel em Accumula… Vai ser madrugada quando terminarmos nossa visita. Não
seria seguro voltar pro castelo estando tão tarde. Você se importaria?
— Vai ter
lanche?
— Claro que sim.
— Então
aceito.
— Excelente. Muito obrigado, meu amigo.
O rei virou o rosto para encarar o membro da Tríade das
Sombras.
— Estamos prontos. Vamos destruir o projeto Techno Blast… De
uma vez por todas.
— Sim, senhor.
— E-eu já falei que você não precisa me chamar de senhor…
— Eu quis mesmo assim. — Quark debochou, sorrindo por trás da máscara.
Quark, N e Scarlet — este último abanando o rabo alegremente
— se retiraram do jardim, fechando a porta com um estrondo atrás deles. E com
um gesto rápido do ninja, eles sumiram, desaparecendo tão rápido quanto uma
chama que se apaga.