Posted by : Jolly E. Sep 7, 2025


O fracasso era um fantasma que perseguia Hilda, de novo e de novo.

Ser uma das melhores nas provas práticas, ganhar do Cheren quando eles pegavam os Pokémon dos pais dele emprestados pra batalhar de brincadeira, todos os elogios e tentativas de conforto dos adultos, nada disso importava. Porque ela não conseguia ter sucesso no que era mais importante: Aquele inferno de prova teórica. Tabelas, contas, fatos históricos, geografia, perguntas. Perguntas e mais perguntas que não tinham fim. Perguntas num pedaço de papel e uma nota seis e meio que a impediam de perseguir a única coisa na qual ela era boa de verdade. A única forma que podia retribuir tudo que sua mãe tinha feito por ela...

Sua mãe que, assim que Hilda sentou no chão da cozinha pra chorar, imediatamente foi consolar a filha. A ideia de brigar ou colocá-la de castigo nem passava na sua cabeça. Mesmo que fosse o que Hilda achava que merecia. “Por que você não grita comigo?”, ela se perguntou enquanto Helga se ajoelhou no chão ao lado dela e tentou puxá-la pra um abraço. Mesmo de olhos fechados, ela conseguia ouvir os grunhidos preocupados do Swoobat da família chegando perto também. Até ele estava preocupado com ela.

— Vai ter uma próxima vez, meu amor...

Ela sentiu Andrew, seu padrasto, colocar a mão na sua cabeça de forma carinhosa.

— A cada prova, suas notas melhoram cada vez mais, então... Na próxima vez você vai conseguir com certeza! — Como sempre, ele tentou ser otimista.

Hilbert não disse nada, mas ela conseguia sentir os olhos dele nela. Hilbert, que conseguiu passar facilmente na prova, mesmo sem ter vontade nenhuma de ser um treinador, e que provavelmente tinha um sentimento de pena no olhar enquanto a encarava. O sentimento era insuportável, então ela se desvencilhou de Helga, se levantou tão rápido que ficou tonta, e subiu as escadas correndo pra poder chorar no quarto. Por sorte, ninguém a seguiu, então ela só escalou pro seu beliche de cima, deitou e continuou chorando por sabe-se lá quanto tempo. Sua última visão antes de cair no sono por cansaço foi a pulseira que sempre usava: A pulseira nas cores de Victini. Cadê aquela vitória que lhe foi prometida?

Quando uma batida na porta a despertou de seu miserável cochilo, já era quase noite. O pôr-do-sol do outro lado da janela era roxo, com alguns toques de laranja. Hilda ergueu a cabeça devagar, e viu uma garota loira mais do que familiar entrando timidamente no quarto.

— Oi, Hil... — Bianca disse, erguendo a cabeça para olhar para ela no beliche de cima.

E ela não estava sozinha. Logo atrás dela, veio Cheren, com as mãos no bolso, olhando pro chão por alguns instantes antes de também levantar o rosto pra olhar pra Hilda. Claro que Bianca viria a visitar depois do que aconteceu e arrastaria Cheren junto com ela... Parecia até que ela estava doente. E talvez estivesse mesmo, com o fantasma de sempre sentado nos seus ombros.

— Hã... A gente veio te ver. — falou o garoto com um tom de voz meio perdido.

— Você não tá bem, né? —perguntou Bianca, já sabendo a resposta.

Ela esticou o braço pra segurar a mão de Hilda, quase tendo que ficar na ponta dos pés pra isso, baixinha como era. A morena não sabia o que dizer. A ideia de que eles dois iriam partir e ela ficaria pra trás só trouxe mais lágrimas aos seus olhos.

— Na próxima você consegue, amiga!

— Não vai ter próxima. — Ela murmurou.

— Quê?! Como assim?!

— Desisto, cansei dessa merda dessa prova! — Hilda falou mais alto dessa vez. — Desisto!

— Não. Você não vai desistir. — Cheren disse firmemente, franzindo a testa. — Não vou deixar.

— E o que você vai fazer pra me fazer mudar de ideia, nerdola? — Ela deu uma risadinha amarga.

— Vou ficar aqui. Não vai ter jornada nenhuma. — Ele cruzou os braços. — Você desiste, e eu também.

— Ah, eu também vou desistir! — Bianca acrescentou, determinada, como se isso fosse uma coisa boa. — Só vou quando você for!

Era exatamente isso que Hilda temia! Ela se sentou e desceu do beliche em um pulo, nem se dando ao trabalho de usar a escadinha. Seus olhos ainda estavam inchados e sua voz anasalada de tanto choro, mas ela tentou soar intimidadora.

— Vocês dois não vão largar tudo por minha causa.

— E o que você vai fazer pra me fazer mudar de ideia? — Cheren imitou suas palavras de instantes atrás.

— E não é como se a gente fosse largar tudo! É só esperar mais seis meses, e você vai conseguir!

Ouvir essas palavras saindo da boca dela doía, mais do que qualquer outra coisa. Hilda já estava acostumada a fracassar, e, claro, talvez os pais do Cheren ficassem um pouco decepcionados com a insistência dele de esperar mais alguns meses, mas eles entenderiam. Mas essa espera teria um peso diferente pra Bianca. Pra ela, seriam mais seis meses morando naquela casa, aturando o pai dela, pisando em ovos. Mais meio ano esperando pela liberdade.

A tentativa de Hilda de soar séria morreu bem rápido, e mais uma vez, ela engoliu o choro.

— C-'cês não precisam fazer isso...

— Mas a gente quer! — Insistiu a loira. — Olha, eu tenho sonhado com isso faz muito tempo, e eu quero que aconteça tudo do jeito que eu pensei! E eu quero que a gente vá junto!

— Não há sentido em partir numa jornada sem minha rival. — Cheren disse simplesmente, como se fosse um fato óbvio, mas ficou um pouco vermelho com as próprias palavras mesmo assim, desviando o olhar.

Hilbert escolheu esse momento muito oportuno pra entrar no quarto, empurrando a porta que estava semi-aberta com o pé, segurando um prato em cada mão. Ele tinha uma expressão hesitante no rosto, mas seus ombros relaxaram um pouco quando ele viu Hilda de pé.

— Papai comprou pizza pra gente.

— Ué, mas a pizzaria não acabou de abrir numa hora dessas? — Indagou Bianca.

— Sim. Mas ele fez uma chantagem emocional pra eles mandarem rápido. — Ele deu de ombros, e se aproximou pra dar o prato pra sua irmã.

Pizza Paldeana. O sabor que Hilda mais gostava, e o que Hilbert mais detestava. Ele preferia pizza de muçarela sem nada em cima, mas no seu prato havia caído alguns pedaços de ovo e cebola da pizza dela. Isso sempre acontecia, e ele reclamava toda vez. Por isso eles nunca pediam pizza meio-a-meio. Mas hoje, ele não pareceu se importar. Hoje, que era uma sexta-feira, quando dona Helga tinha uma regra firme de só pedir delivery nos fins de semana.

— M-mas... Hoje é sexta... — Hilda falou baixo enquanto pegava o prato com o seu pedaço.

— Mamãe abriu uma exceção. Hoje a gente tá esbanjando, pedimos duas. — Ele deu de ombros de novo, com um sorrisinho, e olhou pros dois amigos. — Tem metade quatro queijos e também à Moda Alolana pra vocês dois.

— Obaaaaa!

— Até hoje não entendo como você suporta comer Pinap na pizza... — Cheren revirou os olhos.

— Me deixa! — Resmungou Bianca.

A morena ficou encarando seu pedaço em silêncio por alguns segundos, sem saber o que falar. Agora desistir não era mais uma opção. Ela conhecia Cheren e Bianca muito bem e tinha certeza que eles eram teimosos o bastante pra cumprir a promessa de não sair em jornada sem ela. O sentimento de culpa havia voltado, a culpa de todos ao seu redor estarem a apoiando incondicionalmente, e ela continuava não conseguindo honrar isso...

— Vem, Hil, tô morrendo de fome!

Bianca a puxou de leve pelo braço, mas Hilda continuou parada. Ela ergueu o olhar.

— Eu... E-eu só não sei como agradecer o apoio que 'cês me dão...

O quarto ficou em silêncio por longos, longos instantes. Surpreendentemente, foi Cheren que quebrou o silêncio:

— Se você parar pra pensar, isso somos nós agradecendo você depois de tantos anos.

Ela abriu a boca pra perguntar sobre o quê ele estava falando, mas antes disso, a resposta surgiu em sua mente.

Na época, botar bullies pra correr não era nada demais pra ela. Eles até tentavam, mas ninguém conseguia encarar Hilda de frente. Ela era barulhenta demais, sem um pingo de medo, e tão alta e forte quanto eles. Mesmo antes de seus pais ficarem juntos e eles virarem oficialmente uma família, já era rotina pra ela defender Hilbert dos garotos que tentavam roubar suas coisas ou provocá-lo. Não que fosse muito difícil, ele não era um alvo tão popular. Sendo tão quieto e blasé, ir pra cima dele não tinha tanta graça. A colega de classe dele, por outro lado... Bianca muitas vezes nem percebia que estava sendo intimidada ou humilhada, e quando percebia, caía em desespero quase que imediatamente. No dia que Hilbert contou a ela sobre, Hilda decidiu por um basta naquilo. E naquele dia, por acaso, Bianca estava acompanhada de um garoto de óculos que estava numa série depois de Hilbert, mas uma antes de Hilda.

Cheren se pôs na frente da menininha loira assim que viu dois do grupinho dos valentões se aproximando... Mas eles nem chegaram muito longe antes que Hilda os puxasse pra trás pela gola da camisa. Isso, é claro, gerou uma briga na hora. Anos depois, Hilda não sabe dizer se fica ofendida ou lisonjeada que eles a viam como igual o bastante pra ignorar a regra de não bater em meninas. Uma hora depois, quando perguntada pela diretora se ela se arrependia do que tinha feito, ela abriu um sorriso e disse que faria tudo de novo. Ao vir buscar a filha, Helga teve que fingir que não estava um pouco orgulhosa.

— Aquilo de quando a gente era criança? — A Hilda do presente ergueu uma sobrancelha. — Gente, mas aquilo não foi nada dema-

— Até hoje você não entende isso, né? — Cheren suspirou, a interrompendo.

E, como se quisesse soar misterioso, ele saiu do quarto logo depois que disse isso, descendo as escadas até a cozinha da família Park-Müller. Bianca foi mais expressiva:

— Você já fez tanto pela gente, amiga. Deixa a gente fazer algo por você também, tá?

Ela deu um beijo no rosto de Hilda, e seguiu Cheren. Hilbert deu um leve tapa no ombro da irmã com a mão livre.

— Bora. Vai esfriar se você ficar enrolando aí.

Mas mesmo dizendo isso, ele ainda ficou parado esperando por ela. Pelo que parecia a trigésima vez naquele dia, Hilda engoliu lágrimas.

— Desistir não é jeito de pagar uma dívida, né? — Ela murmurou mais pra si mesma do que pro irmão.

— Não. — Apesar de seu tom neutro, ele estava sorrindo. — Até porque, se você não for, quem que vai manter esses dois na linha?

Pela primeira vez em horas, ela riu.

— Eu, botar alguém na linha?

— É o que você mais faz, ué.

— Se ‘cê tá dizendo...

E então, os irmãos desceram as escadas juntos.

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